Em peregrinação pela Internet, dei casualmente com texto não assinado intitulado "Del vino y la poesía" ("Sobre o vinho e a poesia"); ligeira confusão do anônimo, entre fala do Cavaleiro do Bosque e o escudeiro deste, não tira o delicioso sabor dessa crônica, que me levou à releitura dos não menos saborosos capítulos ligados ao citado personagem do Bosque.
Lá dizia Sancho: "Mas encomendemos tudo a Deus, pois Ele é o sabedor das coisas que hão de acontecer neste vale de lágrimas, neste ruim mundo que temos, onde quase não se acha coisa que seja sem mistura de maldade, embuste e velhacaria." E completava: "... nós aqui nos aviremos e passaremos o melhor que pudermos, buscando nossas aventuras e deixando o tempo fazer sua parte, pois ele é o melhor remédio destas e doutras maiores doenças".
Segue-se longo diálogo entre os dois escudeiros, isto é, Sancho Pança e o escudeiro do Cavaleiro do Bosque. E lá às tantas, estando de estômago e miolos, vale dizer, corpo e espírito, tomados pelo bom vinho que, sentados na relva iam sorvendo, enquanto peroravam acerca de suas virtudes, escreve Cervantes:
"— À fé, irmão — replicou o do Bosque — que não tenho estômago para cardos, nem peras bravas, nem raízes dos matos. Que nossos amos lá se avenham com suas opiniões e leis cavaleirescas e comam o que bem quiserem; pelo sim ou pelo não, eu trago um bom farnel e esta bota [saco de couro] pendurada do arção, e ela é tão minha devota e a quero tão bem, que pouco tempo se passa sem que eu lhe dê mil beijos e abraços.
E dizendo isso a colocou nas mãos de Sancho, o qual, empinando-a rente à boca, esteve fitando as estrelas por um bom pedaço, e em acabando de beber deixou cair a cabeça para um lado, e dando um grande suspiro disse:
— Ah, fideputa, velhaco, este é mesmo dos católicos!
— Vistes — disse o do Bosque em ouvindo o fideputa de Sancho -- como elogiastes o vinho chamando-o "fideputa"?
— Confesso — respondeu Sancho -- que conheço não ser desonra chamar alguém de "filho da puta", quando a modo de elogio. Mas diga-me, senhor, pela vida de quem mais ama, este vinho é de Ciudad Real?
— Bravo bebedor! — respondeu o do Bosque. — De feito não é ele de outra terra, e já tem seus bons anos de envelhecido.

— A mim com odres! — disse Sancho. — Coisas dessas não me escapam. E não é bem, senhor escudeiro, que eu tenha um instinto tão grande e tão natural para conhecer vinhos? Pois basta que me deem a cheirar qualquer que seja, que eu lhe acerto a pátria, a linhagem, o sabor e a idade e os tonéis e odres por onde passou, mais todas as circunstâncias ao vinho concernentes. E não há por que se maravilhar disso, quando eu tive em minha linhagem por parte de pai os dois mais excelentes bebedores que em muitos anos conheceu La Mancha, em prova do qual lhes aconteceu o que agora contarei. Deram aos dois para provar do vinho de uma cuba, pedindo-lhes seu parecer do estado, qualidade, bondade ou malícia do vinho. Um deles provou com a ponta da língua, o outro não fez mais de chegá-lo ao nariz. O primeiro disse que aquele vinho sabia a ferro, o segundo que mais sabia a cordovão. O dono disse que a cuba estava limpa e que o tal vinho não tinha mistura alguma da qual pudesse ter pegado sabor de ferro nem de couro. Mas nem por isso os dois famosos bebedores arredaram do já dito. Passou-se o tempo, vendeu-se o vinho e, quando limparam a cuba, acharam nela uma chavezinha amarrada a uma tira de cordovão. Para que vossa mercê veja se quem vem dessa ralé pode ou não dar seu parecer em semelhantes causas.
Por isso digo — disse o do Bosque — que deixemos de andar buscando aventuras, e como temos pão, não busquemos tortas, e voltemos ao nosso rancho, que lá Deus nos há de achar se Ele quiser."
(As citações do D. Quixote foram extraídas da tradução de Sérgio Molina, Editora 34, 2010.)
Desconcertante cumplido al vino
En peregrinación por Internet, me encontré con un texto sin firmar titulado "Del vino y la poesía"; la leve confusión del anónimo, entre el discurso del Caballero del Bosque y su escudero, no quita el sabor delicioso de esta crónica, que me llevó a releer los no menos sabrosos capítulos relacionados con el citado personaje del Bosque.
Ahí decía Sancho: "Pero encomedémolo todo a Dios, que Él es el sabidor de las cosas que han de suceder en este valle de lágrimas, en este mal mundo que tenemos, donde apenas se halla cosa que esté sin mezcla de maldad, embuste y bellaquería." Y concluía: "Nosotros por acá nos avendremos y lo pasaremos lo mejor que pudiéramos buscando nuestras aventuras, y dejando al tiempo que haga de las suyas, que él es el mejor médico destas y de otras mayores enfermedades."
Sigue un largo diálogo entre los dos escuderos, es decir, Sancho Panza y el escudero del Caballero del Bosque. Y allí, al rato, teniendo el estómago y el cerebro, es decir, el cuerpo y el espíritu, llenos de vino que, sentados en la hierba, bebían mientras hablaban de sus virtudes, escribe Cervantes:
“— Por mi fe, hermano — replicó el del Bosque —, que yo no tengo hecho el estómago a tagarninas, ni a piruétanos, ni a raíces de los montes. Allá se lo hayan con sus opiniones y leyes caballerescas nuestros amos, y coman lo que ellos mandaren. Fiambreras traigo, y esta bota colgando del arzón de la silla, por sí o por no; y es tan devota mía y quiérola tanto, que pocos ratos se pasan sin que la dé mil besos y mil abrazos.
Y, diciendo esto, se la puso en las manos a Sancho, el cual, empinándola, puesta a la boca, estuvo mirando las estrellas un cuarto de hora, y, en acabando de beber, dejó caer la cabeza a un lado, y, dando un gran suspiro, dijo:
— ¡Oh hideputa bellaco, y cómo es católico!
— ¿Veis ahí — dijo el del Bosque, en oyendo el hideputa de Sancho —, cómo habéis alabado este vino llamándole hideputa?
— Digo — respondió Sancho —, que confieso que conozco que no es deshonra llamar hijo de puta a nadie, cuando cae debajo del entendimiento de alabarle. Pero dígame, señor, por el siglo de lo que más quiere: ¿este vino es de Ciudad Real?
— ¡Bravo mojón! —respondió el del Bosque—. En verdad que no es de otra parte, y que tiene algunos años de ancianidad.

Commentaires