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Foto do escritorCláudio Giordano

Colette e o vinho.


Sidonie Gabrielle Colette (1873-1954), francesa, foi escritora e figura feminina da maior expressão da primeira metade do século XX, sendo ainda hoje editada e lida. Personalidade forte agitou seu meio, questionando costumes sexuais e conceitos de gênero da época. Publicou obra extensa e variada com intensa marca autobiográfica.

De seu livro Le Voyage Égoïste, que reúne textos curtos escritos entre 1912-1913, traduzimos o relato que se segue onde se pode sentir, além do estilo bem próprio dela, a habilidade de misturar forte ironia e não menor sensibilidade; naturalmente o tema vinário nele está presente. Este artigo deu-nos oportunidade de conhecer a ligação intensa da escritora francesa com o vinho, a ponto de merecer a publicação de pequeno estudo intitulado: Colette, Un Vin d’Ecrivain (Colette, Um Vinho de Escritora). A seu tempo voltaremos ao tema.


Vindimeiras


Colette


— Para onde você vai em setembro? — perguntou-me em maio minha amiga Valentina. Quando ela me interroga, sinto-me sempre algo culpada. Ela pergunta descontraída, com classe. Seu conhecimento do futuro próximo ou distante me desconcerta. Ela fixa um ponto no futuro e pan! direto no Spa, em Saint-Moritz, em Roma. Com seis meses de antecedência, diz: “No dia 14 de janeiro, de tarde, tomo chá em Caux”.

— Em setembro? Em setembro, humm... Veja, há maré alta na lua cheia... não vou sair daqui por conta da pesca, e também da tempestade do equinócio que será tremenda...

Minha amiga Valentina encolhe os ombros, que se mostram magros, e até um pouco secos. Seu corpo inteiro exibe uma juventude dura, como devastada por inesgotável adolescência. Na rua, vista de costas, ela tem de dez a doze anos, como muitas das mulheres de hoje [1920/1922]. De frente, parece algo cansada de bancar jovem há tanto tempo. Mas que! As coisas são como devem ser. Por isso ela alteou em maio os ombros cobertos de organdi transparente.

Ei-la depois de um verão parisiense de gosto requintado. Ela “fez” as Artes decorativas, jantou nos Cais, manteve a casa aberta até 1º de agosto, tomou o café da manhã nos jardins do décimo sexto distrito. Não vem visitar-me: entra en passant... Pequeno chapéu branco, vestido branco, preto e verde -- o que ela procura com os olhos? Sua sombrinha? Não, seu casaco de motorista, que ficou lá em cima, na rua, em seu automóvel que não se vê: é chique “entrar de passagem” na casa de uma amiga, a quatrocentos quilômetros de Paris, com arzinho de quem veio a pé... No fundo do prado, o mar, com língua cortês, umedece a folhagem de ferro e a flor flamante dos cardos azuis. Minha amiga Valentina, porém, não vê o mar, nem a praia, nem o cabo despojado pelo verão, amarelo e marrom como uma corça: ela pensa nas vindimas. As vindimas se realizam, há dois ou três anos, tão assiduamente como o kasha (prato típico europeu de cereais). Entre minha amiga Valentina e o doce mar leitoso interpõe-se, extravagante, um quadro de vindimas de graça duvidosa, e compadeço-me desta jovem reduzida pela moda a permanente prospecção do futuro. Semelhante ao alfaiate que, quando o tempo enregela com a geada, trabalha o crepom, a flor silvestre em bordados; sob a canícula, dispõe a pelica em toalhas...



— Então você vai vindimar, Valentina?

— Claro, querida.

— É a primeira vez?

Ela enrubesce.

— Sim... quer dizer... eu devia vindimar no ano passado na propriedade de nossos amigos X... E mesmo, há dois anos, na propriedade...

— Não se desculpe. E como lhe parece que

deva ser a roupa nas vindimas?

— Em tecido violeta-púrpura, estampado de uvas amarelas -- responde de bate-pronto minha amiga.

— Chapéu?

— Amarelo. Fita violeta sob o queixo.

— Sapatos?...

— Trançados. Em couro amarelo e branco.

— Tesouras?

— Em forma de bico de cegonha. Em Estrasburgo achei umas encantadoras.

Será que não a pego em falso? Ela imaginou até mesmo as tesouras! Fico abismada ao constatar que sua ignorância das coisas da natureza a provê tão bem, pelo menos na prática, quanto uma consumada experiência. Ela caracteriza a estação pelo tecido, o esporte pela máquina, a beleza pela joia. Interpreta a linguagem dos símbolos como uma noiva romântica, em suma... Mas, certa de ofendê-la, não lhe direi isso.

— Você sabe, Valentina, que as tesouras são, se me permite, supérfluas.

As sobrancelhas depiladas de minha amiga arrepiam-se de espanto e escondem-se sob o chapeuzinho de uma brancura de giz.

— Supérfluas! Lembre-se que eu tenho a antiga corrente de aço que as prende à cintura.

— ... Se você permite, digo-lhe. -- Pois a haste do cacho, a quatro ou cinco centímetros do cepo a que se prende, infla como a serpente que ainda não digeriu a refeição. Pressione com a unha esse ingurgitamento quase imperceptível: ele parte-se como vidro e o cacho cai na cesta que sua outra mão lhe estende. É um pequeno truque camponês que lhe estou ensinando, Valentina, para que você encha mais depressa sua cesta... Era assim que eu fazia quando em mil novecentos e dezessete...

Bem, o resto não tinha a ver com ela. As vindimas de guerra pertencem apenas às minhas recordações. Terra vermelha, cozida pelos longos sois, setembro tórrido, molhado de orvalho ao amanhecer, cachos inesperados sob as figueiras ao aroma de leite fresco... O azul desse ano fluía como um anil sem brechas, da manhã rósea até o entardecer ainda mais róseo. Jamais houve tantos pêssegos nos pessegueiros e, joeirando, maduras, as videiras; jamais tantas ameixas amarelas e ameixas verdes em meio às gavinhas das parreiras. Quantos martins-pescadores verberando sobre o rio, abelhas em halos harmoniosos ao redor das tílias, e os silvos das andorinhas trespassando a nuvem de mosquitos... Quanta alegria animal, que esplendor espontâneo e vegetal em nossas vindimas silenciosas...

Mãos de mulheres, mãos de crianças, afastavam as folhas, tateavam e cortavam o cacho de uvas tépidas. Até onde a vista alcançava não havia um homem sequer entre as fileiras paralelas do vinhedo. O que a guerra deixava de homens ao país contava menos de dezoito anos ou mais de cinquenta, e carregava, encurvado, do vinhedo às cubas, as tinas de madeira que pesam, cheias, mais de 25 quilos.

Ao meio dia, uma jovem esgueirou-se do vinhedo, correu pelo corredor, sentou-se à sombra de uma figueira e apanhou um bebê enfiado nas dobras das vestes. Seu leite pressionava-a, e enquanto ela desvencilhava e despertava o bebê, eu via cair juntas sobre ele as gotas de leite e as lágrimas da muda e solitária vindimeira.



(Le Voyage Égoïste, Paris, 1930; 1ª ed. 1922. Trad. de CG.)





 




Colette y el vino




Sidonie Gabrielle Colette (1873-1954), francesa, fue una escritora y una de las más importantes figuras femeninas en la primera mitad del siglo XX, y que todavía se edita y lee. Una personalidad fuerte que agitó su entorno, cuestionando las costumbres sexuales y los conceptos de género de la época. Publicó un trabajo extenso y variado con una marca autobiográfica intensa.

De su libro Le Voyage Égoïste, que reúne textos breves escritos entre 1912-1913, traducimos el siguiente relato donde uno puede sentir, además de su propio estilo, la capacidad de mezclar ironía fuerte y no menor sensibilidad; naturalmente, el tema vinario está presente en él. Este artículo nos dio la oportunidad de conocer la intensa conexión de la escritora francesa con el vino, hasta el punto de merecer la publicación de un pequeño estudio titulado: Colette, Un Vin d’Ecrivain (Colette, Um Vino de Escritora). Con el tiempo volveremos al tema.



Viñedos

Colette



- ¿A dónde vas en septiembre? Me preguntó mi amiga Valentina en mayo. Cuando ella me interroga, siempre me siento algo culpable. Ella pregunta relajada, con clase. Su conocimiento del futuro cercano o lejano me desconcierta. ¡Ella fija un punto en el futuro y pumm! directo al Spa, en Saint Moritz, en Roma. Con seis meses de anticipación, dice: “El 14 de enero, por la tarde, tomo té en Caux”.

- ¿En septiembre? En septiembre, humm ... Mira, hay una marea alta en luna llena ... No me iré de aquí por la pesca, y también por la tormenta del equinoccio que será tremenda ...

Mi amiga Valentina se encoge de hombros, que son delgados , e incluso un poco secos. Todo su cuerpo muestra una juventud dura, como devastada por la inagotable adolescencia. En la calle, vista desde atrás, tiene entre diez y doce años, como muchas mujeres hoy en día [1920/1922]. Desde el frente, se ve cansada de ser joven por tanto tiempo. ¡Pero que! Las cosas son como deberían ser. Por eso, en mayo,ella levantó los hombros cubiertos de organdí transparente.

Aquí está después de un verano parisino de exquisito sabor. Ella “hizo” las Artes Decorativas, cenó en los Muelles, mantuvo la casa abierta hasta el 1 de agosto, desayunó en los jardines del distrito XVI. No viene a visitarme: entra “de pasada” ... Pequeño sombrero blanco, vestido blanco, negro y verde: ¿qué busca con sus ojos? Su sombrilla? No, su chaqueta de conductor, que dejó allí arriba, en la calle, en su automóvil que no se puede ver: es elegante “entrar de pasada” en la casa de una amiga, a cuatrocientos kilómetros de París, con el aire de alguien que vino a pie ... En el fondo del prado, el mar, con una lengua amable, humedece el follaje de hierro y la nueva flor de los cardos azules. Sin embargo, mi amiga Valentina no ve el mar, ni la playa, ni la tierra despojada por el verano, amarilla y marrón como una cierva: piensa en la vendimia. Las vendimias se realizan desde hace dos o tres años, tan regularmente como la kasha, (plato típico europeo de cereales). Entre mi amiga Valentina y el dulce y lechoso mar, se interpone , extravagante, un cuadro de vendimia de gracia cuestionable, y me compadezco de esta joven mujer limitada por el hábito de hacer la prospección permanente del futuro. Como el sastre que, cuando el clima se congela con escarcha, usa gasa, flores silvestres en broderie; y en la canícula, coloca pieles sobre la mesa ...


Colette


“Entonces, ¿vas a cosechar, Valentina?”

- Claro querida.

- ¿Es la primera vez?

Ella se sonroja.

- Sí ... quiero decir ... se suponía que debía vendimiar el año pasado en la propiedad de nuestros amigos X ... E incluso, hace dos años, en la propiedad ...

- No te disculpes. ¿Y cómo crees que debería ser la vestimenta en la vendimia?

- En tela violeta, estampada con uvas amarillas - mi amiga responde al instante.

- Sombrero?

- Amarillo Cinta violeta debajo de la barbilla.

- ¿Zapatos? ...

- Trenzados. En cuero amarillo y blanco.

- Tijeras? - En forma de pico de cigüeña. En Estrasburgo encontré unas encantadoras.

¿No podré sorprenderla en falta? ¡Incluso imaginó las tijeras! Me sorprende descubrir su ignorancia de las cosas que la naturaleza le ha proporcionado tan bien, y, al menos en la práctica, vivir como una experimentada consumada. Caracteriza la temporada por la tela, el deporte por la máquina, la belleza por la joya. Ella interpreta el lenguaje de los símbolos como una novia romántica, en resumen ... Pero, para no ofenderla, no le diré eso.

- Sabes, Valentina, que las tijeras son, si me permites, superfluas.

Las cejas depiladas de mi amiga se arquean de asombro y se esconden bajo el sombrerito de blanco tiza.

- ¡Superfluo! Recuerda que tengo la vieja cadena de acero que la sujeta a la cintura.

- ... si tú quieres, le dije. Porque el tallo del racimo, a cuatro o cinco centímetros del tronco al que está unido, se infla como la serpiente que aún no ha digerido su comida. Presiona con tu uña este engrosamiento casi imperceptible: él se romperá como el cristal y el racimo caerá en la canasta que tu otra mano extiende. Es un pequeño truco campesino que te estoy enseñando, Valentina, para que puedas llenar tu cesta más rápido ... Era así como lo hacía cuando en mil novecientos diecisiete ...

Bueno, el resto no tuvo nada que ver con ella. Las cosechas de guerra pertenecen solo a mis recuerdos. Tierra roja, cocinada por largos soles, septiembre tórrido, húmedo de rocío al amanecer, racimos inesperados bajo las higueras con el aroma de la leche fresca ... El cielo de ese año fluía como un azul sin grietas, desde la mañana rosada hasta la tarde aún más rosada. Nunca ha habido tantos duraznos en los durazneros y, graneando y madurando, las vides; nunca tantas ciruelas amarillas y ciruelas verdes en medio de los zarcillos de las vides.

Cuántos martines pescadores planeando sobre el río, las abejas en armoniosos halos alrededor de los tilos y los silbidos de las golondrinas que atraviesan la nube de mosquitos ... Cuánta alegría animal, qué esplendor espontáneo y vegetal en nuestra vendimia silenciosa ...

Manos de mujeres , manos de niños, apartaban las hojas, tanteaban y cortaban los racimos de uva tibios. Hasta donde alcanzaba la vista, no había siquiera un hombre entre las filas paralelas de la viña. Lo que la guerra dejaba de hombres al país, eran los que tenían menos de dieciocho años o más de cincuenta, que transportaban, encorvados, desde el viñedo a las cubas, los canastos de madera que pesaban, llenos, más de 25 kilos.

Al mediodía, una joven salió a escondidas de la viña, corrió por el sendero, se sentó a la sombra de una higuera y alzó a un bebé que tenía escondido entre los pliegues de su ropa. Su leche la presionaba, y mientras desenredaba y despertaba al bebé, vi caer gotas de leche y lágrimas de la muda y solitaria vendimiadora.



(Le Voyage Égoïste, París, 1930; 1ª ed. 1920. Trad. de Roberto Vallasciani).





(Le Voyage Égoïste, París, 1930)



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